Amor e Sexo

A importância do Diário de Maria na vida das mulheres!

1 Novembro, 2021

Na história de Portugal, as mulheres nem sempre foram seres livres e esta publicação, que nasceu já bafejada com os ventos da liberdade, acompanhou essa evolução.

Ao primeiro dia de novembro de 1978 chegava às bancas o n.º 1 da revista Maria. Passaram-se 43 anos desde essa data. Durante mais de quatro décadas, são já 2243 edições desta publicação. Páginas, fazendo as contas por alto, são cerca de 255 mil. Carateres, esses, são impossíveis de contabilizar.

 

Ao longo dos anos foram muitas as rubricas a fazer parte da revista Maria, todas elas com o mesmo propósito: dar às mulheres portuguesas (e aos homens também) momentos de lazer e de conhecimento. É com a função de informar que nasce na edição n.º 206 o Diário de Maria (páginas destinadas a esclarecer dúvidas sobre afetos, amor e sexualidade). Afinal, a Revolução dos Cravos tinha acontecido há apenas quatro anos. Havia um caminho a percorrer no que toca à liberdade de abordar assuntos mais íntimos.

A sexualidade na Imprensa feminina

Para percebermos de que falavam as revistas antes de a Maria chegar fomos falar com quem sabe. Com Isabel Freire, socióloga, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, e autora de publicações como Fantasias Eróticas – Segredos das Mulheres Portuguesas (da editora Esfera dos Livros, 2007) e Amor e Sexo no Tempo de Salazar (também da editora Esfera dos Livros, 2010).

 

Para este último livro, a Dra. Isabel Freire analisou o universo das publicações femininas portuguesas. “Durante o Estado Novo (1933-1974) a censura impunha à Imprensa o silêncio sobre certos assuntos, que o regime considerava atentados à moral pública e bons costumes. A contraceção, o aborto, a prostituição, a sexualidade, a homossexualidade, a emancipação feminina e os feminismos estão genericamente ausentes da Imprensa feminina”. E de que forma era a mulher retratada? “À luz de um modelo muito redutor: enquanto mãe, esposa, dona de casa, confinada ao espaço doméstico, alguém que se sacrificava pela família, sem ambições profissionais. Este papel estava bem explícito na Constituição e no Código Civil”, esclarece a socióloga Isabel Freire, que integra ainda o Projeto Mulheres e Associativismo em Portugal (1914-1974).

 

Papel passivo no sexo

Que as mulheres sempre foram mais sacrificadas em relação aos homens é indiscutível. Já a eles, a sua condição, permitia-lhes usufruir das coisas boas da vida. Já ao sexo feminino, pouco era permitido e o direito ao prazer, ou pelo menos a falar dele, não era visto com bons olhos. Ainda no livro Amor e Sexo no Tempo de Salazar, Isabel Freire cita o antropólogo Moisés Espírito Santo com uma frase que diz muito: “Se desse a entender que gostava de ter prazer, a mulher podia ser vista como perversa.”

 

Era o prazer exclusivo do sexo masculino? A, também, escritora explica: “O desejo sexual, aquilo que era muitas vezes descrito como ‘instinto sexual’, atribuía-se ao masculino. A mulher era entendida e ensinada a ver-se a si própria como não tendo desejo sexual, não tendo esse tal ‘instinto’. Ela deveria desempenhar um papel passivo na relação sexual. Antes do casamento, a sexualidade era um tema interdito para as mulheres. No casamento estava condicionada à finalidade da reprodução. Isto… no caso do que se entendia ser uma mulher ‘honesta’, ‘séria’, ‘decente’. Outras mulheres que vivessem a sexualidade de outras formas eram entendidas como ‘desonestas’ e ‘indecentes’.”
Portanto, aos homens era permitido experimentar os prazeres da vida. Já às mulheres era dito que sexo só depois do casamento. Chegavam ao leito nupcial sabendo apenas que o seu papel era o de agradar aos maridos, não só na primeira noite como para o resto das suas vidas. “A ignorância do corpo, o desconhecimento do que se passava no ato sexual, a ausência de qualquer informação sobre como evitar a gravidez era transversal em muitas classes sociais. Os manuais escolares não falavam ‘disso’. Aliás, o corpo humano era exibido sem genitais”, salienta Isabel Freire.

A reprodução sem prazer

Ainda no livro já referido, a socióloga recorda o escândalo que foi em 1969, quando Simone de Oliveira sobe ao palco do Festival da Canção para cantar a Desfolhada. No poema de Ary dos Santos, o verso “quem faz um filho fá-lo por gosto” caiu que nem uma nódoa na toalha, que queriam fazer parecer alva, do Estado Novo. “Dizer ‘quem faz um filho fá-lo por gosto’ representava dizer que a sexualidade não servia apenas a reprodução, servia também o prazer sexual. Esse prazer sexual já era consentido ao homem. A grande novidade é ser uma mulher a dizê-lo. É uma reivindicação política. Simone está a dizer que as mulheres também são donas do seu corpo, da sua sexualidade”. Cinco anos depois dá-se a Revolução dos Cravos e muita coisa começa a mudar, aos poucos.

 

Em 1978 nasce a revista Maria, que se distinguiu das outras publicações na abordagem à sexualidade. Tinha mulheres a escrever artigos que falavam de intimidade. Terá sido este um dos pontos de viragem no universo das revistas femininas em Portugal? “A partir do 25 de abril de 1974, jornais e revistas femininas começam a falar de sexualidade, erotismo, pornografia, contraceção, planeamento familiar, aborto, homossexualidade, masturbação, problemas sexuais, educação sexual, emancipação, feminismos, divórcio… Estes temas interessam muito a todos, mas claro… às mulheres interessam imenso.

 

Porém, o facto de se falar de um assunto não significa que se dê informação adequada. Nalgumas publicações mantém-se uma visão da sexualidade conservadora, repressiva. Nalguns artigos as mulheres continuam a ler recomendações para ‘ser’ e ‘fazer’ de um modo e ‘não ser’ e ‘não fazer’. Em muitas circunstâncias, são instigadas a manter um certo estatuto de menoridade, de incapacidade de decidir por si, a viver na medida do que ‘outros/as’ entendem que deve ser o ‘certo’, o ‘normal’ de outro.”

Cartas publicadas sem resposta

Após as primeiras edições da revista Maria nas ruas, começaram a chegar à redação cartas de leitoras com dúvidas sobre assuntos mais íntimos. Foi assim que nasceu o Diário de Maria. Para Isabel Freire “seria interessante estudá-lo”, embora ressalve que não o conhece. “As secções vocacionadas para os temas do ‘coração’ eram quase diários públicos, confessionários’ ou consultórios para assuntos da vida íntima e privada. Nalguns casos, as cartas das leitoras eram publicadas sem resposta, noutros havia alguém na redação a dar-lhes resposta.”
No caso da revista Maria, perante a seriedade das questões que chegavam todos os dias à redação, e segundo relatos de chefias e jornalistas da altura, as cartas não cabiam nas caixas de papelão de grandes dimensões existentes para as guardar. Tornou-se imperativo encontrar alguém que respondesse com conhecimento de causa às questões. Foi assim que o Dr. Gabriel Frada chegou à Maria. O psicólogo, professor e escritor era a pessoa encarregue de esclarecer todas as dúvidas. “Quando me convidaram para colaborar com a revista Maria, eu, na altura, estava a dar aulas sobre a evolução da sexualidade ao longo da História.”

 

Na revista Maria, até hoje, as respostas são dadas por especialistas e não por jornalistas

Mas não se pense que a vida do primeiro psicólogo da revista Maria foi fácil. E perante os seus pares, o Dr. Frada não era visto com bons olhos. “Sejamos francos, na altura, para uma pessoa que dava aulas na faculdade estar a colaborar com uma revista desse teor era rebaixar-se – eram consideradas publicações de literatura corriqueira –, mas eu nunca pensei assim! Qualquer comunicação, ou qualquer zona de comunicação, é valiosa, seja para quem for.”

 

O Dr. Gabriel Frada entendia que “se havia um problema, havia uma pessoa em sofrimento e merecia uma resposta adequada”. E dá um exemplo do que na altura se escrevia, não por especialistas, obviamente: “Uma carta de uma namorada que tinha sido violada pelo namorado e agora ‘o que havia a fazer?’. Eu encontrava muitas vezes um tipo de resposta: ‘Ó mulher, então se já foi violada não há nada a fazer, porque já não havia remédio, é continuar e acabou’. E a meu ver este era o tipo de resposta que nunca poderia ser dado, não respeitava o sofrimento.”

 

As questões íntimas das leitoras começaram a ser respondidas de forma fixa na edição n.º 206.

O facto de andar na rua, nomeadamente em transportes públicos, onde muitas pessoas circulavam de revista Maria na mão, permitia-lhe ouvir críticas à audácia da publicação que deixava que as mulheres expusessem as suas dúvidas sobre todos os assuntos, incluindo a sexualidade. “Cheguei a ouvir reações de pessoas que, sem saberem que era eu, diziam que eu era um criminoso que estava a tirar a inocência às pessoas”. Respostas essas que eram dadas com todo o cuidado. “Eu dava sempre alguma informação, porque é que as coisas aconteciam e que efeitos teriam. Tentei sempre respeitar aquele problema. Se estavam a colocar a questão era porque era, de facto, um problema para a pessoa.”

 

Para o Dr. Gabriel Frada é certo que o Diário de Maria “tem um valor indiscutível”. O profissional está convencido de que, na altura, “houve uma evolução muito grande”. “O Diário de Maria servia de orientação para muita gente”, salienta o psicólogo. Ainda acrescenta que falava da Maria nas suas aulas na faculdade e que esta foi muitas vezes objeto de estudos e de teses de mestrados nas universidades.

 

A fórmula do Diário de Maria

Objeto de estudo e de discussões acesas, o Diário de Maria acompanha gerações e ainda hoje serve de inspiração. Na Sic, no programa Estamos em Casa, Diana Chaves já teve os especialistas do programa Casados à Primeira Vista a responder a perguntas íntimas. Assim como programas de rádio e até personalidades famosas da televisão portuguesa não resistiram à fórmula do Diário de Maria. Falamos de Cláudio Ramos, que na sua página da Internet, Eu Cláudio, respondia a perguntas de cariz íntimo e sexual.

 

RESPONSABILIDADE

“Na altura vendiam-se mais de 400 mil Marias todas as semanas”, salienta o Dr. Gabriel Frada. Eram muitas as questões que chegavam diariamente. Muitas vezes o psicólogo respondeu de forma mais extensa para as moradas das pessoas porque o espaço na revista era limitado.

 

Obrigada!

Ao longo dos 43 anos de vida da “sua melhor amiga” – a revista Maria – foram muitos os psicólogos que connosco colaboraram. A eles, em nome das leitoras e dos leitores que semanalmente enviam as suas dúvidas sobre afetos, sexo e amor, o nosso muito obrigada.

 

 

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Texto: Carla Silva Santos

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